quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

CONTO - Na Escuridão

Escuridão.
Abro meus olhos, procurando por alguma luz... mas só há Escuridão.
Não me sinto bem em lugares escuros, fechados.
Mas nesse momento eu não estou preocupado. Pois é uma Escuridão diferente.
Não há som.
É terrível imaginar uma situação assim: escuridão sem som. Mas, apesar do meu desconforto neste momento, não estou descontrolado. Não, estou até calmo. E curioso.
Como vim parar aqui?
O quê é aqui?
Onde?
Tento lembrar da noite passada, mas não vem imagem alguma.
Além disso, minha cabeça dói.
Interessante... Com todo esse silêncio, com essa noite sem estrelas.. e eu só estou preocupado com minha amnésia e dor de cabeça.
Não consigo lembrar que dia é hoje. Perdi a noção do tempo. Não sinto fome, então ainda deve ser cedo.
Tento me concentrar em alguma coisa... esposa, filhos, casa, emprego, cachorro, carro, em qualquer coisa pra aliviar a dor de cabeça.
Mas não consigo fixar o pensamento.
Tento criar, em minha mente, alguma luz. Ou reproduzir algum som.
Só então percebo que não “sinto” minha voz.
Acho que não estou conseguindo falar nada também. Não tenho certeza, pois não consigo ouvir.
O que é isso? O que aconteceu comigo? Fiquei surdo? Mudo?
Não sinto as cordas vocais. E então, me dou conta de que nunca senti antes minhas cordas vocais, quando falava algo e ouvia minha voz. Não saberia reconhecer em algum momento, como este, se elas estivessem vibrando durante minha tentativa de falar. É inútil.
Pela primeira vez me sinto assustado. Surpreso.
Mas logo passa.
Sempre fui ensinado a controlar meus nervos diante de uma situação nova.
Manter a calma. Faço isso muito bem.
Começo uma contagem na minha mente, de números seqüenciais – uma das maneiras que me ajudam a manter o controle: 1, 2, 3, 4, 5..... Quando estou no número 842, uma imagem aparece em minha mente.
Uma placa de carro. Não consigo identificar a cidade; só vejo esses três dígitos finais. 842. Sei que é um carro, mas não identifico o modelo.
A imagem some e volta o breu.
Tento descobrir o que poderia ser aquela placa.
Finalmente ouço um som.
Um choro.
Pelo tom de voz, parece ser uma mulher.
Chora baixinho... distante... Com essa escuridão, o choro se torna angustiante e sinistro.
Mas não sinto medo. Sinto apenas pesar por não conseguir ver a origem desse lamento.
Gosto de ajudar pessoas. Sempre gostei.
Principalmente quando estão chorando.
Eu acho que teria sido um bom padre. Tento rir ao pensar nisso e não consigo sentir meus músculos do rosto. Mas a risada em pensamento também é gostosa.
Contrasta com o choro distante.
Súbito, o choro pára. E novas imagens se formam em minha cabeça.
Muitas imagens. Rostos, objetos, corpos vestidos, relógios, velocímetro, céu, lua, uma seqüência de imagens de uma só vez, como em um vídeo-clipe psicodélico.
A dor de cabeça aumenta. Se eu estivesse sentindo meu estômago, talvez ficasse enjoado.
Muitas outras imagens em seqüência.
Perco a conta dos corpos vestidos e rostos diversos.
Será que são as pessoas que eu conheci na vida?
Será que isso é algum sonho/pesadelo causado por algum remédio?
Será que estou morto?
Me assusto com estas possibilidades. E quase perco o controle sobre o medo.
De repente as imagens somem e, na Escuridão, só existe visível, em letras brancas enormes, aquele número: 842.
O quê é isso?
A Escuridão total volta. Por alguns segundos, acho eu.
Então vem uma luz branca.
Envolvente. Rápida. Poderosa.
Absorve toda a Escuridão. Machuca minha mente, aumenta a dor de cabeça.
Com a Luz surgem novas vozes. Duas. Uma mulher e um homem.
Mas eu ainda não vejo pessoa alguma.. ou paisagem.. nada.
Só o branco. Intenso. Doloroso. Tranqüilizador.
Pelas vozes percebo que estão conversando, mas eu não consigo entender o diálogo.
Apenas identifico algumas palavras aleatórias.
...cuidado... ...sabemos... ...começo... ...lágrimas... ...entende... ...filha... ...fé... ...sofrendo... ...depende... ...acidente...
Me preocupo com essas palavras. Finalmente começo a ver novas imagens.
Minha casa. Minha esposa do lado de fora, de pé, olhando pra mim.
De repente, volta a enxurrada de imagens sem sentido.
Rostos, objetos, corpos vestidos, relógios, velocímetro, céu, lua.
O Branco total volta.
Surge um carro.
Suas rodas se movem, mas o carro está parado, voando no nada.
Tento ver lá dentro, quem está dirigindo.
Vejo a mim mesmo.
E ao meu lado minha esposa.
Só então identifico meu próprio carro.
Procuro a placa, e vejo os três dígitos finais: 842.
Claro... como pude esquecer a placa de meu próprio carro?
Mas o quê significa aquilo?
Vejo a resposta se formando quando surge uma paisagem.
Uma rua.
O carro andando, em velocidade normal, na rua vazia.
É noite. A lua está Crescente.
Já não sou mais um espectador; agora estou DENTRO do carro. Dirigindo.
Sinto o volante em minhas mãos. Mas não consigo frear o carro, ou virar a direção para algum lado.
Sou guiado pelo meu sonho.
Olho para o lado, e minha esposa está fixa na estrada.
Ela se vira para mim e pergunta – finalmente ouço uma voz conhecida – algo sobre trânsito.
Eu não entendo totalmente a pergunta, mas ouço ela falar trânsito.
Olho pelo retrovisor, imaginando se meus filhos estariam sentados no banco traseiro.
Mas não vejo nada através do espelho. Nenhum reflexo.
Tento me virar pra trás, mas não consigo.
Pergunto a minha esposa dos nossos filhos, mas ela não me responde.
Nem esboça reação.
Tento outra pergunta.
Ela nem se vira para mim.
Acho que ela não pode me ouvir.
Tento aumentar a voz, mas não dá resultado.
Grito. E nada. Ela continua olhando pra frente.
A rua está vazia.
A lua no céu está Crescente.
Penso no início do meu sonho, na Escuridão e silêncio total.
Agora só há Silêncio.
O carro aumenta a velocidade ao chegar em uma parte da rua sem curvas.
Não gosto de perder tempo, por isso não tento frear o carro nesse trecho.
Ao passar por um cruzamento, com o sinal aberto, sinto um golpe forte no lado direito.
Minha esposa é jogada sobre mim.
O vidro frontal se estilhaça, o painel do carro contorce e quebra.
Mas não há som.
Silêncio total.
Sinto dor de cabeça, e olho pra minhas mãos.
Muito sangue sobre elas.
Começo a me desesperar e vejo minha esposa, sem movimento, com a cabeça pendendo pro meu lado.
Desacordada.
Chamo por ela, mas eu mesmo não ouço minha voz.
Tento abrir a porta do carro, que também está muito contorcida e aparentemente emperrada. Mas não consigo mexer meu braço.
Olho através do vidro quebrado. Luzes começam a piscar.
Tento sair, mas não consigo mover nenhum músculo.
Penso que estou preso no cinto de seguranças, mas percebo que a coisa é pior.
Não consigo mais mover sequer a cabeça.
Começo a ficar ofegante; preocupado.
Vejo alguns vultos passando através das luzes piscantes.
Grito por ajuda.
Por socorro!
Mas não ouço minha voz.
Começam a aparecer diversas pessoas... diversos rostos... diversos corpos cobertos...
Olho o painel do carro. O velocímetro quebrado. O relógio do carro, parado. 20:42. 842.
Lembro do céu. Da lua. Crescente.
Toda essa cena some.
A Escuridão volta, engolindo tudo.
Começo a entender meu sonho.
Trata-se de uma coincidência. Infelizmente, uma trágica coincidência.
Começo a sentir uma dor profunda em todo o meu corpo. A dor percorre cada centímetro, até se fixar em minha nuca.
Ouço novas vozes, dessa vez de cinco pessoas diferentes.
Quatro masculinas, e uma feminina.
Nenhuma dessas vozes está triste, ou chorosa.
Pelo tom da conversa descubro que são médicos.
Discutem a melhor maneira de fazer uma cirurgia em um corpo inerte.
Imagino que seja o meu corpo.
Penso no que pode ter acontecido com minha esposa.
Sinto vontade de chorar mas não sinto meu rosto, meus olhos ou sequer minha cabeça.
Apenas sinto a dor pontiaguda onde seria minha nuca.
Profunda. Violenta.
Tento gritar, gemer, emitir algum som que me alivie a dor.
Mas só há Silêncio novamente.
Voltam as vozes dos médicos.
Diagnosticaram uma fratura na coluna cervical.
Discutem como operar.
Penso em minha esposa; ela deve ter falecido no desastre.
Mesmo não sendo por culpa minha, me sinto responsável.
Então, pela primeira vez, choro em minha mente.
Tento me lembrar do rosto dela.
Não consigo controlar meu pensamento.
Volta o vídeo-clipe de imagens ininterruptas.
Rostos, objetos, corpos vestidos, relógios, velocímetro, céu, lua.
Rostos angelicais, objetos brancos e dourados, corpos vestidos de túnicas, relógios flutuando se desfazendo ao vento, velocímetro desaparecendo, céu escuro sem estrelas, lua Crescente se tornando Cheia.
Começo a entender meu sonho.
Olho fixamente pra lua – agora Cheia – e surge uma cena, como em uma tela de cinema.
A lua se torna gigante, ocupando todo o espaço de minha visão na noite sem estrelas.
Vejo um filme, as imagens sem foco definido... embaçadas.
Identifico uma sala de cirurgia, com cinco pessoas de pé, ao redor de uma pessoa deitada de bruços em uma cama.
Não vejo os rostos.
Mas as pessoas de pé – médicos, deduzo – estão em atividade frenética.
Mexendo no corpo deitado. Trabalhando em suas costas.
Imagino que seja uma cirurgia em mim.
Estou ME vendo. Sendo operado. Sendo salvo.
Como em um filme, a cena sofre uma edição: a cirurgia acaba, e os médicos estão ao redor do corpo, já deitado de costas, em repouso, com vários aparelhos e tubos ligados/conectados.
Os médicos conversam, mas eu não entendo o que eles falam.
Uma nova edição na cena mostrando a pessoa permanece deitada na cama, ainda não posso ver seu – MEU – rosto.
Duas outras pessoas estão na sala, uma sentada e a outra de pé, ao seu lado.
Identifico as vozes: uma mulher chorando e um homem conversando com ela.
As mesmas vozes que ouvi neste sonho, pouco antes.
Ouço o diálogo... identifico algumas palavras... as mesmas de antes.
...cuidado... ...sabemos... ...começo... ...lágrimas... ...entende... ...filha... ...fé... ...sofrendo... ...depende... ...acidente...
Não entendo a cena. Nem o diálogo.
A dor na região onde fica minha nuca é insuportável. Parece que vou explodir.
Tento me concentrar nas pessoas da sala.
Então a imagem começa a ficar com foco definido.
Identifico a mulher: minha esposa.
O homem, de semblante cansado e experiente, parece ser um médico.
Ouço nitidamente a conversa agora:
“O tratamento exige cuidado redobrado a partir de agora. Ainda não podemos prever as seqüelas desta cirurgia em seu marido. No início da operação, os danos na coluna pareciam irrecuperáveis, mas conseguimos um resultado muito bom, graças principalmente à urgência com que vocês foram atendidos. O jovem que acompanhou vocês, o causador do acidente, estava muito abalado e queria acompanhar todo o processo. Felizmente ele não teve muitos danos físicos, mas pareceu profundamente abalado e arrependido. Veja bem, isso não justifica o acidente, mas acho que você entende o sofrimento do rapaz que perdeu a filha nesse desastre também. Espero que compartilhem apenas desejos de melhoras para seu marido e para a esposa do rapaz, que também está em recuperação de cirurgia. Mas, sobretudo, que tenha fé na recuperação do seu marido. Imagino o quanto esteja sofrendo mas saiba que agora não depende mais de você e nem de mim a recuperação de seu esposo. Os aparelhos mantêm ele respirando, mas sair do coma em que se encontra só está ao alcance dele mesmo. Para você resta apenas rezar, acompanhar a recuperação um dia de cada vez, e torcer para que esse acidente não seja mais prejudicial do que já está sendo. Agora vou deixá-la um pouco sozinha, mas estou em minha sala se precisar de qualquer coisa.”
Começo a entender meu sonho.
Uma nova edição na imagem: vejo pela janela que é noite. Algumas pessoas estão muito agitadas correndo por um corredor. Não reconheço nenhuma destas pessoas.
Entram muito rápido em um quarto, onde uma mulher – minha esposa – chora desesperada, apontando para uma pessoa deitada imóvel em uma cama. Ela aponta para mim.
Não ouço vozes. Não ouço o choro. Não ouço barulho nenhum, exceto um bipe ininterrupto..
A dor em minha nuca pára, de repente.
Entendo o que aconteceu. O bipe significa que os aparelhos não conseguiram me manter vivo.
Triste, percebo que não poderei mais abraçar minha esposa.
Morri naquela noite.
Os médicos tentam, em vão, reanimar meu corpo.
As imagens desaparecem lentamente, como fumaça.
A lua, minha tela desse filme, some.
Tudo some. Resta apenas a Escuridão.
Profunda. Densa. Poderosa.
Penso no que acontecerá comigo agora.
Pra onde vou? Será que verei Deus?
Só existe Escuridão.
Até que, depois de alguns momentos, vejo algo na Escuridão.
Um ponto minúsculo, branco.
Uma Luz!
Começo a me animar quando a Luz vai crescendo lentamente.
Absorvendo a Escuridão aos poucos.
Começa a brilhar com intensidade, à medida que vai se tornando maior.
A Luz já ocupa metade da Escuridão, quando ouço uma Voz feminina suave: “A dor parou?”
Não ouço minha própria voz, mas respondo em pensamento: “Sim.”
A voz pergunta: “Onde acha que você está?”
“Não sei. Imagino que seja algum tipo de purgatório”, penso eu em resposta.
A Voz feminina desaparece, sem me confirmar.
A Luz já ocupa quase toda a Escuridão. Brilhando intensamente.
Percebo que não é a Luz que está crescendo..
EU é que estou caminhando em sua direção, me aproximando cada vez mais.
Me sinto muito feliz. Como jamais me senti antes.
Acho que é a Paz que todos desejam aos que falecem.
Vejo um portão dourado, imponente. Enorme.
Ouço algo inesperado pra mim, naquelas circunstâncias: canto de pássaros silvestres.
Meu Deus... será o Céu? O Paraíso? – penso eu.
Lembro de minha esposa.
Olho pra trás, mas só vejo a Escuridão.
Penso em dizer a ela o quanto me sinto bem... feliz... e o quanto amo cada momento que passei com ela e meus filhos. Espero que ela tenha escutado meu pensamento.
Mas acho que ela sabe disso tudo.
Sempre soube.
Olho para o Portão dourado. E ouço a Voz feminina me dizendo, enquanto o Portão se abre lentamente: “Bem vindo de volta. Sentimos sua falta.”
Sorrio, em paz.
E percebo que já não estou mais sonhando.