sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

CONTO - Afrodite

Quando ela se aproximou, lânguida e curiosa, eu devia ter me afastado após os minutos de dúvida que tive ao analisar a importância que me era apresentada.

Sua estirpe não era para um escritor amarrotado. A aura que ela emitia, apesar de sua jovialidade, era de poder e conquista. Duas palavras que, mais tarde, fui perceber que ela fazia questão de não usar, apesar de demonstrar em algumas ocasiões.

O fato é que aqueles minutos de dúvida em que me encontrei só reforçaram a avidez daquela ninfa predadora. Que me cercou. E, por fim, me capturou.

Às primeiras palavras que me dirigiu pessoalmente, confesso, não prestei atenção pois ainda tentava me refazer do impacto de seus olhos.

Havia algo de mágico em seu olhar. “Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, como diria José Dias no célebre Dom Casmurro, que ela tanto gostava.

Mas, definições ou comparações, nada seria capaz de se aproximar do que aquele olhar transmitia. Era envolvente. Desconcertante. Provocante.

Só consegui me recompor depois de certa insistência dela para perguntar onde iríamos. Como se ela não soubesse.

Antes, porém, seguimos para a Lagoa, onde ao som de uma banda de chorinho, conversamos sobre as fatalidades do destino e sobre as possibilidades filosóficas acerca do mundo moderno. Para ela, segundo me disse mais tarde, pareciam palavras ao vento apenas para disfarçar a iminência da pele. Para mim, era uma medida estratégica de retomar o controle de minha ansiedade e, por conseqüência, dos comandos da situação toda. E funcionou, de fato.

Após o passeio na Lagoa, seguimos para o local planejado e finalmente pudemos nos ver livres. Livres de olhares curiosos. Livres da distância. Livres de preconceitos. Livres de pudores. Mas não livres da ansiedade, que se manifestou no primeiro segundo após fechar a porta e nos encontrar em um longo e envolvente beijo.

A exigência que sempre me foi peculiar em relação ao ato de beijar me permite dizer que, se não foi o melhor que tive, pois já tive outros tão bons quanto aquele, com certeza foi o mais esperado. E valeu cada segundo. Cada minuto. Cada mês, ano, cada década que vivemos naqueles instantes do ósculo. Parecia um caminho sem volta para a eternidade e, se eu morresse naquele momento, com os lábios e língua junto aos meus naquele encontro de almas, estaria rumo ao Paraíso desejado por muitos.

A cada instante a ansiedade dava lugar à afobação, então resolvi detê-la um pouco. Precisava ser cuidadoso. Mais que isso, queria ser cuidadoso. Não havia pressa, e era extremamente prazeroso verificar cada segundo de suas reações e expressões. Sua boca, perfeita, ansiava por mais, assim como seus olhos que me devoravam. Sua linguagem corporal denunciava que ela não queria a calma que eu propunha, mas suas palavras soaram como eu imaginava: “você manda”.

Diante disso a conduzi até outro cômodo, devidamente preparado com suas músicas escolhidas e tecidos preferidos, onde passaríamos a noite.

Nada mais importava, nem que horas eram, nem o antes, nem o depois. Apenas o momento. Cada momento. Cada gesto, cada palavra, cada carinho ou olhar trocado. Cúmplice. Sensual. Erótico.

À medida que esse ritual acontecia, era o calor dos nossos corpos quem ditava cada peça de roupa a menos. Uma a uma, lenta ou rapidamente, não importa. A memória de cada um pode mentir ou aumentar. Mas não pode esconder a impressionante lembrança que me fez suspirar sorrindo, ao vê-la nua, deslumbrante e escultural. Afrodite de meus sonhos.

Por um breve instante pensei em apenas contemplá-la assim, entregue, desejosa, por horas. Mas a lembrança viva de cada momento que estivemos afastados, distantes, e da agora gloriosa presença que estava diante de mim, me fez despertar deste delírio e me entreguei a desejo que senti em cada centímetro de seu corpo. Nosso destino se realizando. Nossa obra-prima sendo iniciada.

Nos completamos e nos encaixamos perfeitamente já na primeira vez, mesmo com minha preocupação para que ela ficasse confortável durante todos os momentos. Minha memória terá sempre registrada sua primeira expressão daquela mistura fascinante de prazer e dor, da iniciação. Ah, seus olhos... que sempre me instigaram e agora me encaravam, úmidos, sorridentes, suplicantes, envolventes. Seus olhos me diziam que ela era minha, para sempre naquele instante.

Minha fêmea.

Os corações descompassados em ritmos próprios aos poucos foram se acertando, conforme nossos corpos também se tornaram um só. E no momento do êxtase, não eram duas almas perdidas que se saciavam, mas sim uma alma dividida que, enfim, se unificava. Éramos imortais, acabávamos de descobrir.

Por fim nos abraçamos. Ela, com o rosto escondido parcialmente pelos belos cabelos, tentava disfarçar as lágrimas furtivas que eu, cavalheiresco, fingi não ver. Afaguei sua nuca, enquanto nos recompusemos, num abraço por trás deixando meu rosto encostar levemente em seus cabelos, o suficiente para que eu pudesse respirar seu perfume suave e fresco, delicioso, que me fez viajar por alguns instantes em companhia de ninfas e deusas gregas, como numa pintura de Boticelli. Aquele aroma era a mais perfeita forma de sinônimo que poderia existir para a sutileza e a inacreditável beleza daquele momento. Inalava, embriagado. E percebi que eu mesmo deixava uma lágrima correr em meu rosto.

Me levantei e o movimento me fez voltar à realidade. Servi alguns frios para ela e, enquanto recuperávamos a energia, percebi que ela era muito mais interessante que eu poderia imaginar. Suas palavras, sua eloqüência, sua jovialidade, sua curiosidade... me encantavam.

Sorri por perceber que estava em um daqueles momentos raros que passariam diante de meus olhos, quando eu morresse.

Nossa rotina nos três dias a seguir foram de descobertas prazerosas e realizações de todas as formas que desejamos. Algumas foram perfeitas, outras foram desastradas; mas todas memoráveis, simplesmente por ser ao lado dela.

No quarto dia ela retornou para seu exílio.

E eu fiquei, apenas com as lembranças e os sonhos de uma vida perfeita.

Decidimos que continuaríamos assim, distantes, não sabíamos se para sempre ou por pouco tempo.

Já faz quase um ano e, ao me dar conta disso, sinto uma pontada de tristeza e saudade enquanto penso que talvez nunca mais a reveja.

Mas sorrio em silêncio saudoso por saber que jamais esquecerei o seu perfume suave e embriagante...

Ah, o seu perfume...