terça-feira, 4 de março de 2008

CONTO - A última hora

Era pouco mais de meia-noite quando senti uma necessidade irrefreável de dizer adeus àquelas pessoas na festa.
Durante muito tempo em minha vida eu não senti vontade de ter tanta gente assim à minha volta e agora, às vésperas de partir, me surpreendi ao ser consumido por uma sensação de saudosismo destes amigos, e até mesmo dos que eu não considerava amigos, antes mesmo de deixá-los.
Se é verdade o que dizem, que só aprendemos a dar valor às coisas e às pessoas depois que as perdemos, então eu me tornara uma exceção naquele instante.
Senti saudades e quase me arrependi da minha decisão de ir embora.
Mas claro que isso não me fez mudar de idéia e, para afastar esses pensamentos, subi em cima da mesa da sala e pedi a atenção de todos, pois queria dizer algumas coisas.
A maioria, sob o efeito do álcool, assoviou e bateu palmas enquanto eu aguardava, simulando constrangimento, até que finalmente silenciaram.
Primeiramente – disse eu – agradeço a todos vocês. Acho que ninguém aqui tem idéia do quanto isso é importante para mim, ter a presença de tantos amigos e colegas nesta despedida. Muito obrigado mesmo. Principalmente aos que me ajudaram na organização disso tudo... Jonas, Eduardo e Mariana, também Sílvia e Patrícia. Obrigado por tornarem esse momento inesquecível pra mim. Talvez a maioria de vocês não entenda os motivos que me fizeram decidir ir embora, mas entenderão mais cedo do que imaginam. Só saibam que, independente do rumo que cada um aqui seguir, eu sempre serei grato a todos vocês por terem feito parte de minha vida aqui nesta cidade que aprendi a amar. Agora, antes que eu comece a chorar, quero finalizar dizendo que se eu não consegui realizar alguns de meus sonhos aqui, pelo menos posso partir com a certeza de que tive ótimas companhias na maior parte do tempo. Gosto de todos vocês. Agora, tenho que mijar.
Novos aplausos enquanto desci da mesa. Algumas pessoas riam da minha frase final, outras mais emotivas disfarçavam as lágrimas.
Recebi uns cumprimentos e abraços no caminho até o banheiro e, ao entrar e fechar a porta, encostei na parede respirando profundamente e me sentindo aliviado, como se tivesse tirado um peso das costas.
Então, foi como se tudo aquilo que aconteceu segundos atrás tivesse simplesmente desaparecido.
Apesar do volume da música e das vozes que, mesmo abafadas pela porta do banheiro, continuavam altas, pela primeira vez naquela semana eu havia finalmente encontrado alguns segundos de alívio.
E após o alívio, senti medo, como há muito tempo não sentia.
Chegara a hora de partir.
Tirei minha carteira e meu relógio, colocando sobre a tampa da privada.
Abri a carteira e retirei um bilhete que já havia escrito antes. Não reli, para não permitir a chegada de qualquer tipo de arrependimento.
Deixei o bilhete debaixo do relógio.
Me olhei no espelho e percebi o cansaço em meu rosto e, no fundo dos meus olhos, a triste confirmação de que partir era a melhor decisão a tomar.
Lembrei de meus pais. Meus irmãos. Eles estariam me esperando.
Não senti vontade de chorar, apesar de achar que seria apropriado para a ocasião. Simplesmente não consegui.
Então, abri a torneira e molhei meu rosto, olhando no espelho o efeito das falsas lágrimas.
Pensei na ironia disso, minha vida inteira foi cercada por emoções vazias e tristes, e nada mais apropriado que eu fingir um choro para mim mesmo, apenas como um escape para que eu me sentisse mais aliviado naquela despedida particular.
Aliviado por demonstrar no falso choro a falta que meus pais e meus irmãos faziam pra mim, desde que se foram.
Ninguém na festa, nem mesmo meus amigos de verdade, perceberam a coincidência da data. Agora, quase uma da manhã, fazem exatamente três anos.
Suspirei, enquanto olhava meu rosto molhado.
Balbuciei uma frase sem sentido, de um filme que eu gostava muito.
Pela última vez senti vontade de fazer aquilo na frente de todos, como uma cena de impacto na vida, pra variar. Mas preferi enfrentar sozinho, até porque provavelmente eu não teria coragem de fazer na frente dos outros.
Tirei do meu bolso a faca e cortei meus pulsos, e depois meu pescoço.
Antes de morrer, ouvi alguém batendo na porta.
O barulho me fez lembrar de quando eu me trancava no banheiro com revistas de mulher pelada e minha mãe ou meus irmãos ficavam batendo na porta, insistindo pra eu sair rápido do meu suposto banho.
Meu último gesto foi esboçar um sorriso, pela lembrança.